quinta-feira, 18 de agosto de 2022

 A ILUSÃO DAS MASSAS

    Pourquoi y a-t-il quelque chose au lieu de rien?[1] A pergunta foi grafada em francês por ser feita em proporções maiores do que nos idiomas restantes, sendo conhecida universalmente por todos na língua francesa. Ora que bem, tem-se no núcleo da questão a resposta para algo que ecoa desde os tempos em que, comprovada e simultaneamente, os ovos surgiram antes das galinhas. Nada nasce pronto. Todavia, o entrave, partindo da nossa compreensão ególatra, é a identificação com um dos dois grupos cognitivos ao qual pertencemos: os que querem crer e os que querem saber. Contudo, já que existe algo, os valores vêm tomar lugar ao nosso lado na longa jornada de entendimento deturpado em que nos arrastamos, como resultado da sujeição imposta ao povo pela classe sacerdotal.

    Como eu, na segunda metade da existência, consegui pular do primeiro para o segundo grupo social, ou mesmo que não seja social o termo certo, que sejam distintas massas humanas, livrei-me da condenação à permanência eterna na idade mental de uma criança. Por ser a crença em fábulas religiosas uma das razões do egoísmo humano, os valores teriam, obrigatoriamente, sua origem nos propósitos construídos por alguma divindade inquestionável, para que possamos temê-la, amá-la e obedecê-la, com seus valores bem assentados. Sim, egoísmo, pois “umas tais escrituras”, segundo Nietzsche, vêm a ser algo como um salve-se quem puder. Porém, ainda que tenhamos por natureza uma profunda necessidade de crença, mas portadores de um cérebro como uma máquina de superstições, ainda assim, podemos pular o muro da libertação. Porque, de fato, qualquer divindade é questionável e o bonito da história é que sabemos disso, mas precisamos da hipocrisia para sobreviver e cimentar a História com a nossa contribuição no palco.

    Diga-se de passagem, por nos recusarmos a ver o realismo da existência, optamos por realidades paralelas e mesmo alternativas bem pessoais. Nem tanto no foco da nossa estupidez, nem tanto holística, já que somos fadados a ver as partes e não o todo, entretanto, é algo que não conseguimos vencer com facilidade. Basta voltarmos o olhar para a customização divina que empregamos na nossa vida reservada, onde, para uns, Deus é assim, para outros é assado. "Mas para mim Deus é como eu o entendo", diz o fulano da flauta. E cada um customize seu Deus como bem entender, porque é assim mesmo que se lida com fantasmas. O cinismo da nossa espécie se mostra cada vez mais. Enquanto nosso ego nos defender de tudo à nossa volta, a ideia de Deus precisará ser mantida, custe o que custar e, na medida em que a divindade for preservada como persona, menos será percebida como ela é realmente – apenas uma ideia.

    De novo Nietzsche, que profere e registra a morte de Deus no século dezenove, mas nos adverte da necessidade de suplantar a ideia do Deus innatus, pois sem isto é impossível perceber a realidade. E tudo vem da grande manobra das religiões: a sacralização. Acontece que o sagrado é uma invenção humana, onde está implícito o medo, a covardia e a culpa. Por isso, surge no Iluminismo a tese da dupla verdade, “cada macaco no seu galho”, onde o ceticismo dos aufklärer² não interfere nas crendices dos ignorantes, embora, sustentada pela hipocrisia em que vivemos. Todavia, a recíproca é real, os ignorantes também são alijados com rigor do convívio social dos eruditos. Hoje, mais do que nunca, valemo-nos da conveniente assertiva: nós não cremos em deuses ou teologias, mas, pelo Estado e o controle social, é necessário que o populacho se mantenha crédulo – precisamos disso. Sabemos que Deus está morto, mas nem tivemos a decência de acompanhar o seu enterro. Cometemos o deicídio e deixamos a divindade insepulta, justamente por admitirmos várias moldagens e customizações de uma entidade que nem temos ideia do que seja, mas repetimos “vai com Deus, fica com Deus”. Cometemos toda sorte de mentiras sinceras do nosso interesse, entretanto, com o alívio de que prestamos um contributo à vileza consensual bem dosada. O secularismo social de fato apagou Deus do contexto, mas considera fundamental que o cenário não seja desmontado em benefício dos interesses desse multissecularismo irremovível. O que é isto senão um contrato social fideísta-desmitologizado?

    Sacralização, o grande marketing que deu certo. Assim, cada Deus capricha na sua manufatura, um livro aqui para criar uma religião, outro lá, para equilibrar as diferenças e agradar a todos. Aqui no Ocidente, é o bastante falar só da Bíblia, isto já inclui judeus e cristãos. Daí, então, faz-se necessária a distribuição de livros para o povo, afinal, como assentar os dogmas e doutrinas com a palavra e recomendações indiscutíveis que vêm lá de cima? No boca a boca a coisa se perde, pois só os tais escritos ficam, mas desde que se tornem sagrados. Na Antiguidade, começaram a confeccionar os escritos que, mais tarde, seriam encadernados e impressos para atender ao povo de Deus. Mas curioso e estranho é que não se tenha, em nenhum museu do mundo, fundação ou biblioteca, um original sequer de tudo o que foi escrito na Bíblia... Porém, de nada adianta debater com os cegos de coerência, porque é impossível convencer pela razão àqueles que insistem em crer em contos através das emoções.

    Se algo é sagrado, está posto. Não é para ser questionado. Mas por quê? Enfim, vivemos no século vinte e um, o mundo mudou e os perceptos religiosos não podem sobreviver à onda de informações que nos chegam a cada minuto. O maior desespero de qualquer crente hoje é o desmoronamento das fés e do descredenciamento dos Livros de todas as religiões, que se mostram ainda contumazes, apesar da morte de Deus, admitida há mais de duzentos anos. Os crédulos sustentam afirmações em defesa da fé que já se tornaram pueris para o nosso tempo. Discursos deslocados em favor de divindades ausentes. Cada vez mais turrões, os crentes nos significados se refugiam, mais e mais, no fundo da caixa que escolheram, reagindo em nome da promessa de moradas eternas.

    Hoje, conceitos mudam rapidamente. Na Antiguidade, mais lentamente, ainda assim, em constante evolução. Basta que se reflita, por exemplo, sobre a questão da alma. Na verdade, o conceito de alma se desenvolveu no Egito, Índia, Mesopotâmia e no mundo grego, mas sempre com formas diferentes de interpretação. A alma nunca foi matéria unívoca na sua forma de entendimento, pois a maior prova disso está na base do raciocínio de que a alma é, tão somente, uma invenção da linguagem. Com as devidas equivalências, no hebraico néfesh; no sânscrito atman; no grego psykhé, pneuma; em latim anima. No pensamento grego, já encontramos em Sócrates, Aristóteles e, sobretudo, Platão, o desenho básico para a questão da alma. Mais tarde, a Igreja Católica, apropria-se do que foi mastigado pelos gregos, para aplicar o maior engodo teológico de todos os tempos. A invenção consensual da alma, criada e reforçada através dos vinte e um concílios da Igreja, foi o caminho aceito pela massa míope com a finalidade única de criar uma sensação de eternidade abraçada pelos bilhões de pobres através da teocracia. A articulação da Igreja, ao impedir que a verdade prevaleça, substituído-a pela ilusão, ao abarrotar os cofres eclesiásticos nos oculta a única coisa que temos: a vida aqui, hoje. Isto sonega a verdadeira finalidade da nossa vida, que é deixar de existir.

    Enfim, todas as fábulas da religião pressupõem um significado. Quanto mais significados, melhor. Mais lucro para o clero, sendo a alma a fundação de toda a falácia. Ora, o significado da vida é a própria vida. Não há significados como a fé impõe. O que é significante para um não é o mesmo para outro, portanto, os significados existem apenas para cada um, pois se trata de algo absolutamente individual. A família, o trabalho, as aventuras na vida, os estudos, os ideais e o que mais se quiser priorizar para atravessar a existência assombrosa. Somos formatados pela evolução para inventar significados. Com essa tese, Deus passa a ser um completo absurdo. Então, a situação que assistimos é um festival completo de pseudorreligiões mantido pela nossa falta de reflexão com uma pitada de cinismo. Deus começou sua carreira como um ser antropomórfico e depois foi diluído aos poucos para criar suas adaptações.

    Depois do que Nietzsche andou declarando, dizem que Deus ainda respira na UTI, mas se mantém vivo somente pela antiga questão dos valores morais, consensualmente admitidos como que advindos dele mesmo e de maneira incontestável. Diante desta ficção pia, cabe minha ferrenha contestação: jamais a origem da Moral, oriunda da divindade, poderia ter fundamento científico algum. Se a Moral fosse oriunda de Deus realmente, não existiria esse brutal relativismo de fundamentos morais no planeta – haveria um só princípio moral universal. Engraçado é que cada povo tem seu próprio conjunto de normas morais derivado, é lógico, dos seus próprios livros sagrados... Tal atoarda estúpida não passa de escravidão da mente após séculos de doutrinação religiosa. Mas, para os que se preocupam em sair do estado mental de letargia do passado, é necessário compreender o mundo em que vivemos. Ora, os valores morais estão, logicamente, ligados aos estados cerebrais e mentais do indivíduo. Nessa ordem exata, sofrendo influências sociais, geográficas, biológicas e físicas. Mas esses valores não guardam relação com a ciência, porque é na ciência que encontramos respostas para tudo e não nas afirmativas tresloucadas de qualquer pressuposto metafísico. Se existem propostas para que religião e ciência ocupem diferentes áreas do conhecimento, portanto, passíveis de ser niveladas como epistemologia, ou como algo dentro da mesma estatura, é impossível que tais propostas sejam levadas a sério. Religião não é conhecimento. Não é ciência. É adivinhação, palpite, presunção e má fé com o objetivo de sujeitar a mente das pessoas fracas ou sonsas através dos recursos emocionais. A religião foi criada para os que precisam dela. Ressalte-se que a religião começa onde a ciência ainda não resolveu uma determinada questão no tempo da abordagem correta. Isto significa, tacitamente, que discursos enganadores da religião não podem ser levados a sério no universo científico. Às vezes desconfio que essa alienação tenha origem na nossa acomodação intelectual.

    Se a ciência aponta o relativismo como um non sequitur⃰[2], então, todo relativismo deveria ser repensado. Os fatos científicos não podem se distanciar dos valores. Mas os valores não representam comportamento, ética e conduta que visam a benevolência? Entretanto, é óbvio que qualquer cientista sabe da incompatibilidade entre religião e ciência, mas alguns fingem que isto não existe, pois são vítimas dos conflitos de interesses que ocultam nos bolsos. E esses tais são atores antes de serem cientistas. Sabemos no fundo que os adultos religiosos se devoram mundo afora na disputa para ver quem tem o melhor amigo imaginário, enquanto os egoístas vão à igreja porque se sentem bem.

    Cheguei à honesta conclusão de que fatos precisam estar juntos de valores, então, deduzo com clareza que só através da experiência direta, a empeiria dos gregos, fica possível a compreensão dos sentimentos. As consequências no mundo sem perquirição de nada valem. Para que valores sejam dimensionados, é necessário experimentar a alegria, o medo, tristeza, a dor, a traição, a raiva, o amor, etc., para que possamos inferir nas criaturas os resultados de tudo isso. Melhor dizendo, é através da análise das consequências e dos estados conscientes que se estabelece a fundação de todos os valores. Aliás, por que não mencionarmos a base de tudo isto, advinda de filósofos utilitaristas como John Stuart Mill e Jeremy Bentham, que nos mostraram o próprio caminho do consequencialismo? A ética da virtude produz as melhores consequências e visa o bem estar de todos. Para isto, é preciso entender que um agente seja responsável tanto pelas consequências intencionais de uma ação, como pelas não intencionais quando previstas e não evitadas. Logo, as consequências têm que ser levadas em conta quando se estabelecem juízos sobre o certo e o errado.

    Há tempos, não entendo porque devo associar valores a Deus, até porque, muitos desses valores não se harmonizam às coisas boas que meus pais me ensinaram e, por certo, fizeram-me feliz, não tendo relação direta com essa ou aquela divindade. E mesmo, são muitos os dogmas estabelecidos em diferentes credos, que colidem uns contra os outros de forma violenta, para serem justificáveis na construção da minha vida interior. Diga-se de passagem, essas questões de divindades é algo que interessa somente a cada um de nós. A menos que, para os que querem erguer os olhos com coragem, surjam os necessários argumentos por amor ao debate, mas são poucos os que não fogem dele. As violentas e inelutáveis mudanças sociais fizeram de Deus uma massinha de modelar, vítima da customização, adaptando-o aqui e ali aos caprichos humanos. Desta feita, o postulado Vox populi, Vox Dei[3], torna-se realidade sob o ponto de vista populista. Ora, só os mitos não morrem, pois são amamentados pelo clero para a sedução das massas ajustadas. Como Deus não pode ser separado do dogma, ou abstraído da própria teologia, faz-se a prova inconteste do seu destino na fábula. A tão esperada finalidade pelo entusiasmo dos crédulos é pulverizada pelo próprio dogma, que colocou o todo poderoso numa máquina de moer, não sobrando nada consistente nos livros santos sobre ele. Digo mais, pelo fato de tantas construções dogmáticas e aventureiras, produzimos o deus do absurdo. Isto porque, nesse processo pluripartido, o deus não pode ser abstraído nem descartado, como pensara Nietzsche, já que descobrimos se tratar de um produto destinado a todos os níveis de compreensão, em que pese a finalidade restante. Ao que nos parece, enquanto houver um mendigo no mundo, essa construção deplorável continuará existindo nas mentes desniveladas, por isso, a miséria das massas sobrevive. Infelizmente, perder tempo com tolos, é chutar cachorro morto.

    Como guardo a absoluta certeza de que o homem mais importante do século dezenove foi Charles Robert Darwin, não pude ignorar suas palavras pertinentes ao tema abordado por mim: “Acreditando, como acredito, que o homem no futuro será de longe uma criatura muito mais perfeita do que é hoje, o pensamento de que ele e outros seres conscientes estão fadados a uma aniquilação completa depois de tal lento progresso contínuo é intolerável. Para aqueles que admitem inteiramente a imortalidade da alma humana, a destruição do nosso mundo não parecerá tão horrível”... E os ingênuos, que não veem a realidade, permanecerão tão felizes quanto as plantas.

    Assim aclarada a sustentação, tem-se dito o resumo. Porém, se o presente texto não vier a cumprir o destino certo? Alguns, rangendo os dentes, ainda podem rotular meu texto de “uma ceia com o diabo”, mas buscarão textos correlatos quando se cansarem das baboseiras sacras e sairão em busca da realidade, nada esperançosa, mas inevitável. Pelo menos, compreenderão de vez o que significa o que é, e o que deveria ser. Simples assim: aos que têm um mínimo de coerência é sempre tempo para a reflexão diante do espelho: “Ora, ‘meu Deus’, por que não vi isso antes?”. Religião é teimosia de pensamento, que pretende mover as leis do universo para dar respostas às orações dos iludidos, mas que nunca abrangem os sentimentos do outro. Religião é manter convicção sem razão suficiente.

 

    São Paulo, 18 de agosto de 2022

 

    Ronaldo Antunes

 

 

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1)       Por que existe algo no lugar do nada?

2)       Intelectual; preparado.

 ⃰  “Não se segue que” – falácia lógica na qual a conclusão não decorre das premissas.

[3] A voz do povo é a voz de Deus.


terça-feira, 6 de julho de 2021

 PICASSO, GÊNIO, BROMISTA?


  Em 26 de abril de 1973, o jornal O GLOBO publicou uma reportagem perturbadora. Eu estava no início da carreira de designer e ilustrador, diretor de arte da Norton, por isso as coisas ficaram confusas.

 “Era Picasso realmente um pintor genial ou estava apenas com a sua revolução artística, tirando proveito da ‘imbecilidade, da vaidade e da concupiscência dos seus contemporâneos’? Não foram poucos, no mundo, os que se recusaram a ver no artista malaguenho qualquer dimensão de excepcionalidade e denunciaram a sua obra como farsante. Nesse grupo impugnador se incluía, surpreendentemente, o próprio Picasso. O seu autojulgamento de bromista, que ganhou celebridade e riqueza à custa dos basbaques das belas artes, está numa carta-confissão que endereçou ao escritor italiano Giovanni Papini, em 1952. Publicada no Diário ABC de Madri, a carta foi reproduzida pelo La Croix, de Paris, e aqui vai parte do seu texto, tal como foi publicado: Desde que el arte no es el alimento que nutre a los mejores, el artista puede ejercer su talento intentando todas las fórmulas y todos los caprichos de su fantasia y todos los caminos de su charlatanismo intelectual. En el arte, el pueblo no encuentra consolación ni exaltación, pero los refinados, los ricos, los ociosos, los destiladores de quinta-esencias, buscan en él la novedad, lo extraño, lo original, lo extravagante y lo escandaloso. Yo mismo he contentado, desde el cubismo y mucho antes, a todos esos criticos con todas las bromas que se me ocurrian y que ellos más admiraban cuanto menos las comprendian. A fuerza de ejercer todos eses juegos, esos rompecabeças y esos arabescos, yo me he hecho célebre rápidamente. Y la celebridade significa, para un pintor, ventas, fortuna, riqueza. Yo soy ahora, además de célebre, rico. Pero cuando me quedo a solas conmigo mismo no puedo considerarme un artista en el grand sentido que esta palabra tiene. Grandes pintores fueram Giotto, Tiziano, Rembrandt y Goya, yo soy solamente un bromista que ha comprendido su tiempo y ha sacado lo que ha podido de la imbecilidad, la vanidad y la concupiscencia de sus contemporáneos”.

 Sei que é difícil matar a fantasia, pois é o mito que move a humanidade e a religião é a maior prova disso. Mas quando Picasso morreu, eu estava na Norton Publicidade, em 1971, no auge da idolatria por ele e me sentindo o gênio da publicidade... Estranho é que, tempos depois, comprei um livro, O pensamento vivo de Picasso, da editora Martin Claret e, na página 32, estava exatamente o texto acima, publicado no jornal O GLOBO... Pois é, no seu diário íntimo, Picasso cuspiu na cara da sociedade hipócrita, comprou castelos e se tornou uma divindade! Só que bromista, em espanhol, quer dizer embromador.


    Aliás, para ser mais objetivo, a verdade é que, no apagar das luzes do impressionismo, a arte começou a perder o seu fundamento maior, o compromisso com a técnica. Foi Joseph Beuys quem falou a grande besteira: “Todo homem é um artista!”. Com isso, inaugurou-se a fase de que tudo feito em nome da arte, também era arte. Da alta cultura, a arte passou pelo senso comum e, nessa curva, migrou para um tipo de meio-conhecimento estético escamoteado com a finalidade de enganar os esnobes. Foi a era dos discursos. Já falamos antes da cultura da ritualização do sem sentido. No final das contas, o palco foi montado para gerar rios e montanhas de dinheiro no século vinte. Inventaram a maior indústria de gênios da história. O lodaçal de pobreza em que a arte hoje se atolou é o preço pela “liberdade” que ela desfruta. Arte hoje é mais um envolvimento atmosférico, olfativo e psicológico do que, propriamente, o envolvimento com os princípios que sempre nortearam a grande pintura. Não importa muito o que uma moldura envolve. Importa o colorido dos tubinhos de tinta; os cheiros diversos que são sentidos quando entramos nas galerias novas, como da tinta de plástico de alguma obra, ou da madeira de alguma instalação; as vedetes que se denominam artistas fazendo firulas e o monte de baboseiras discursadas, enquanto seguram copos. Enfim, os artistas não precisam saber pintar nem desenhar, basta que sejam interessantes para impressionar a plateia e que escondam muito bem a sólida fonte de indicação que os colocou no palco.

 1970, à época em que trabalhei na Norton como diretor de arte, li as confissões cabotinas de Picasso e, na ocasião, descobri um mestre genial, que fazia parte da galeria dos grandes ilustradores americanos: Benjamin Albert Stahl. Um fato atraente é que o próprio Norman Rockwell se declarou apenas um ilustrador diante de Ben Stahl, que o considerava um grande artista: “We are but illustrators, Ben Stahl is among the Masters”. Curioso é que Stahl, não cristão – de origem judaica, pintou a Via Dolorosa mais sofrida e espetacular que já vi! Suas Estações são de uma força e sofrimento inigualáveis. É a prova de que o profissionalismo na arte não tem nada a ver com inspiração divina... Então, quando percebi a grandiosidade do artista que descobrira, diante das notícias que tive de Picasso e demais modernistas, fiquei perturbado. Na época, minhas indagações ainda eram ingênuas e infantis. Na minha cabeça não havia espaço para entender como um pintor tão famoso poderia se declarar um embromador e a mídia rolando a bola de neve do charlatanismo intelectual. E todo aquele “blá-blá-blá” sobre centenas de quadros que a crítica tornara tão mágicos e sedutores? Tudo mentira? Levou muito tempo depois disso para que eu pudesse entender. Assim, amadureci e descobri a mídia. 


 Tempos depois, fui em busca do que realmente me interessava e comecei com descobertas através de milhares de textos, que precisavam ser enfrentadas. Susan Best, uma pintora realista de Buffalo, Texas, mandou um recado para os incompetentes pintores modernos: “-Tenho oitenta anos e trabalhei toda a minha vida na arte com sucesso. Aprendi a suportar as críticas desde jovem por colocar em jogo um fator negligenciado pela maioria: o bom senso. Os compradores em potencial percebem logo se um quadro lhes interessa ou não. Nunca jogam dinheiro fora: ou adquirem a obra, ou desistem dela. Não precisam de ninguém para dizer-lhes se a compra lhes convém ou não. Simples, talvez, mas o bom senso funciona perfeitamente. Nós artistas temos orgulho do nosso trabalho e nunca fazemos menos do que o melhor ao nosso alcance. Nosso sucesso depende da satisfação com que realizamos esse trabalho, do prazer que proporcionamos aos outros e do número de viagens que fazemos ao banco... Então, aos tão famosos intelectuais da pintura, eu digo que nós não precisamos de vocês. Vão ladrar diante da lua!”.

 O problema é que não me conformo com os imbecis que pasmam e os hipócritas que fingem pasmar diante de tantas bobagens e falcatruas que representam a tão falada arte moderna. Numa época em que o pós-moderno já entra em falência, como falar em moderno? Acontece que, para mim, todo o festival de mentiras e embromações começou no fim do século dezenove. Três iludidos que foram enganados pela crítica, pois disseram-lhes que eram gênios. E os tais iniciaram tudo aquilo: Van Gogh, Gauguin e Cézanne. Coitados, foram vítimas dos marchands enganadores da época. O primeiro “gênio”, incompetente, recusou a ajuda de um tio, pintor acadêmico de mérito, só vendeu um quadro em vida e acabou por dar um tiro no peito. O segundo, incompetente, abandonou a família, fugiu para os mares do sul e acabou tomando arsênico e, sem mais poder fugir de si mesmo, morreu dias depois. O terceiro acreditou ter descoberto nova fórmula e, pouco depois, declarou-se um falhado para Zola. Três vítimas infelizes, que acreditaram em mudar a história da arte. Mudaram tanto, que o século presente assiste a maior adesão ao clássico de todas as épocas. A partir do final do século dezenove, o circo foi montado. Inventaram o culto ao individualismo. Ah, o individualismo. Basta pintar umas bolas um pouco diferentes e a peça está pregada pela crítica: um novo gênio que surge. A permissividade encontrou campos sem fim. E quem não é tentado fazer alguma coisa para ver se encontra um pouquinho de sorte com a mídia? Não se precisa mais de escola, nem de ofício, nem de dedicação espartana diante de um cavalete. É só encontrar um padrinho do mecenato, um tio rico, talvez, e um crítico enrolador para escrever um monturo de porcarias para consolidar o novo talento. Ah, e altas doses de politicalha para sustentar a fraude intelectual elaborada pela velhacaria da crítica. 

 O jovem pintor realista americano Jacob Collins, aclamado pela crítica e festejado pela revista American Artist, declarou de maneira forte e concisa: “Tenho que me libertar do conceito modernista de que tudo que fiz é válido.” Aí está o centro de toda a discussão entre o clássico e o moderno. Por causa disso, a arte de Collins evoluiu. Ele aprendeu a trabalhar duro, estudar mais e se tornar crítico em relação ao seu trabalho. 

 James Gardner, no livro “Cultura ou lixo?”, faz declarações: “-Uma vez estabelecido, o mito do mundo da arte foi adotado por curadores, marchands, críticos e artistas, e reforçado por algumas eminentes exceções que confirmam a regra. Quem quiser entrar no sistema e não enxergar através do mito, não olhar para a gigantesca máquina de fazer dinheiro que ele é não irá muito longe”. E ainda: “O melhor que podemos dizer para muitos negociantes e artistas é que, se eles enganam os outros, o fazem com toda a sinceridade dos seus corações, pois primeiro enganaram a si mesmos”. E toda a embromação orquestrada, já na tentativa de montar a nova ordem mundial, teve um bom início no Armory Show, quando nascia o século vinte. Enfim, não há como mudar, porque o ser humano adora mitologias inofensivas. 


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sábado, 13 de junho de 2015

UMA VISÃO DO FUTURO

O sintoma agudo do desvio cognitivo não é como o nosso cérebro constrói as crenças, mas como ele as transforma em verdades. Falo aqui do risco da inferência paradigmal injuntiva – a construção de padrões seguidos do ato de conferir significado aos padrões absorvidos pela mente. Pelo fato de cultivarmos nossas verdades empiricamente (somos cuidadosos com isso), em geral ocupamos toda a existência nessa tarefa de delimitar fronteiras cognitivas e, então, sucumbimos à equivocidade dos conceitos mal formulados. Prosseguimos no erro.

O cérebro “quer” que nossas mentes adotem uma crença qualquer para que a confiança emocional em algo se estabeleça positivamente. Só um esforço imenso de reeducação neuronal pode preparar o indivíduo para enfrentar os ataques dos desvios cognitivos. Por exemplo, a ciência não reconhece um deus fora do espaço-tempo (tampouco dentro dele), porque ela só trabalha com elementos do nosso mundo de perceptos. A ciência atua no mundo natural, não no sobrenatural. É nisso que temos de bater e rebater, plantar na mente, criar uma segunda natureza que nos ajude no apelo à razão. Acostumarmo-nos a examinar tudo com abordagem científica, enfim, criar um hábito de exclusão de desvios da cognição para não cairmos na rede do passado.

A religião se constitui como fato social e existe para fortalecer o ideal comunitário, o espírito de rebanho, fixando normas morais para os indivíduos. Uma nova visão, entretanto, começa a nos acenar com postulados perturbadores: a moral se desvincula de Deus e deixa de ser um problema teológico. Fala-se nos dias presentes em ateísmo pós-cristão. Uma forma de higienizar a antiga mácula do ateu imoral, perigoso, imundo e sem ética. Seria a supressão das práticas religiosas com a adoção do modelo de moral cristã? Se os religiosos podem lançar mão dos seus familiares valores cristãos, por que não os céticos abraçarem a essência da moral cristã? Vamos por aí? O mais importante é a moral em si, de interpretação transcendente ou não e o resultado final é o que conta. O ateísmo pós-cristão talvez seja mais pragmático, pois não passa pelo crivo do dogma. O cumprimento de uma ética sem punição do além, mesmo porque a aplicação da norma moral é desse mundo, não é extensiva ao além... A exclusão da sanção divina no lugar da adoção da responsabilidade social, junto com a conversão ao esvaziamento do ego. Não aquela coisa tautológica do passado que virou pregação corriqueira dos epíscopos já idos. Ninguém vai anular seu próprio ego de forma voluntária, pois ele é uno e imanente. Como, então, solucionar essa imbricação de conceitos? Com a atitude de adestramento neuronal voluntário para minorar os desvios da cognição, visando à responsabilidade social e o fim da incultura religiosa. Buscando a recuperação do espírito de comunidade perdido no hoje, não para celebrar um tipo de ágape moderninho, mas para participar de um lanche social, tendo por objetivo a sobrevivência da espécie. Aqui.

Enquanto o cristianismo estabelece nesse mundo o valor do pedágio para a eternidade e situa suas perspectivas para o além-mundo, o ateísmo pós-cristão anuncia que os valores morais não são propriedade exclusiva da religião. Antes, precisávamos dos seus modelos, até descobrirmos que sua lógica é defeituosa. É para ser assim, porque a dogmática foi sempre elaborada e impingida sub-repticiamente. Agora, contemplamos o declínio da fé, e o ceticismo pós-cristão se empenha na produção de significados sem superstição. Não se trata de um debate acrimonioso em torno da religião, mas uma consideração sobre o declínio da fé.

Na verdade, essa ideia de ateísmo pós-cristão já encontra seus esboços no início do século dezenove, na obra de Feuerbach, Auguste Comte, Nietzsche, Walter Benjamin e, mais recentemente, em Michel Onfray. Nietzsche pretendia infundir os ideais seculares como a arte, a filosofia, a música, com seus valores próprios, no lugar da moral cristã desgastada pela incultura. Não teve, porém, sucesso no seu tempo, pois era um individualista quixotesco. Não contou com a empresa, com a força da instituição para divulgar suas ideias, porque a Igreja detém o status corporativo que transforma as necessidades dos fiéis em grandes montanhas de dinheiro. Temos aí a vantagem indestrutível da instituição, a utilização de amuletos que eternizam seus dogmas: a cruz por exemplo. Com isso, tudo é branding – o logotipo do Vaticano existe desde a Idade Média –, os designers da cúria se incumbem do trabalho de atualização e os sacerdotes se empenham na compensadora tarefa de saciar as necessidades da alma. Atente-se para o adestramento do tom de voz melífluo dos padres às autoritárias pantomimas dos pastores – a instituição protege as emoções que precisamos cultivar!

O momento que vivenciamos no mundo é marcado por uma ascensão devastadora do capital e pela ditadura dos mercados. Também a volta da ideia marxista com outras roupas, pois caem os sistemas, mas as ideias persistem. Isso é sintoma de ceticismo. Na concepção de Feuerbach, as interações humanas, outrora planejadas por Deus, deveriam ser administradas pelo “homem do amor” e não mais pelo Eterno... Segundo o filósofo, após o abandono da religião e da Bíblia, o homem teria que se fixar no amor, porque, segundo ele, “sem amor não há verdade e só tem valor quem tem valor”. Ora, esse conceito existiu há muito tempo quando Deus foi substituído pelo homem do amor. Hoje, na hipermodernidade, o conceito desse homem do amor deu lugar à deificação do capital que nos infelicita e oprime – o capital como religião. O homem do amor morreu na praia! Veio o homo ludens[1], não mais o de Feuerbach, mas o completamente vazio de amor, para derramar sobre o mundo o sentimento tanatofílico.

Ainda que impregnada da forte carga de ateísmo para a época, a filosofia de Ludwig Feuerbach apresenta nuance diferente: o real para ele é pleno do que é sensível, pois só o que é sensível nos mostra o objeto no seu sentido verdadeiro e único – a origem da possibilidade do amor.

O ateísmo pós-cristão, blasonado pelos filósofos de hoje, também é conhecido como ateísmo pós-moderno. Mais certo seria o termo ateísmo pós-moderno, porque todo ateísmo cristão é pós-cristão, embora tudo continue apenas como um rótulo da moda. Roupinha moderna derivada do traje filosófico impecável de Feuerbach. Acontece que na descoberta do poço sem fundo da existência, uma vez privado do mapa da religião, o homem começa a dar voltas no deserto. Quando sua compreensão não alcança o significado de apenas-vida-biológica, o tal do borrão no nada, de saber que sua vida é um acontecimento biológico banal, ou quando se instala o medo, esse mesmo homem retroage, querendo ir para o céu a todo custo. Se não, resta abraçar esse tipo de ceticismo sem retorno, indo de encontro a um possível hedonismo ético. O que mais? Por isso, tenho minhas dúvidas sobre a aplicação dos valores da religião, da moral cristã sem o Cristo.

Será que levaríamos a termo esse intento de tomar emprestada a moral cristã de maneira profunda, ou seria um verniz comportamental apenas para inglês ver? Qual seria o regulador da nossa vida, ao ser Deus excluído do programa por completo? Compromissos com o ego e propósitos pessoais se quebram fácil e nos revelam que não somos como imaginávamos. A moral, porém, não pode ser teológica per si.

Na catedral, um homem religioso entra e se prepara para a contemplação. Cheiro típico, emoção abafada. Silêncio, um monge à distância com a tonsura aparente às vezes. Lugar onde os mais abastados deixam somas gordas, talvez para apagar o passado de como e quando as somas foram obtidas. Obras de arte sólidas que só existem em museus, influxo catártico, pois em museus ninguém ajoelha ou fecha os olhos. Ali é para tal, e os populares precisam disso. Sentimos que a imagem salva, já que naquele ar faz o papel redencionista. Historinhas de santos fazem parte da pedagogia aplicada – não exigem que os fiéis reflitam –, apenas acompanhem as narrativas visuais dos mestres da Old school[2], porque seduzem até os mais humildes. As imagens produzem compaixão e nos obrigam a caminhar com os santos mártires em devoção até descobrirmos como tudo foi inventado... Mas aí é tarde, pois se não deixamos cair uma lágrima no piso do santuário, pelo menos engolimos a bola da vez... O papel didático da arte sacra e seu apelo emocional já foram demonstrados. Olhamos para o lado e o fiel que está mais próximo oferece a sensação de crença profunda. Vez por outra, ele dá uma olhada de canto do olho para sondar a área e reforçar a fé. Tudo é sensação de bondade eterna e mistério. As colunas estão ali, lembrando-nos da eternidade do processo.

O que observo no didatismo da Igreja de Roma é o domínio da eficácia emocional através dos padrões clássicos. É só pendurar um Picasso ou um Giorgio de Chirico na parede e a devoção vai embora... Parece que o tempo pesa na empresa e todo negócio tem seu lado psicológico para dar certo. Mas o espetáculo é bonito e comove, basta assistir a missa do galo: a quantidade de mármore já esmaga o nosso ego de prazer estético.

Na pintura, os clichês são o segredo: deserto, pescarias, óbolo da viúva, mar aberto, ceias, milagres, anjos, tudo, enfim, resolvido com poucas cores, explorando o chiaroscuro caravagesco e a emoção está garantida. Nas esculturas, basta a concentração nas expressões de espanto, compaixão, ira e, de maneira especial, na expressão das mãos para que o mármore de novo convença os fiéis. Enfim, na arquitetura, a separação do mundo: o gótico como tom maior – grandes espaços que mantêm a atmosfera ideal para a nossa flutuação, a leveza das abóbadas, o peso e a gravidade do assumido compromisso de fé misturado ao festival de fantasias dogmáticas acumuladas por séculos. O gosto da história envolve-nos de vez. Em plena metrópole, entramos numa catedral, saímos da maldade mundana e encontramos o Deus que procuramos do jeito que o império de Roma nos legou em herança.

Quando o homem religioso saiu da catedral, alguém que não gostava de arte e seguia os conselhos do fradinho Lutero, bradou: “Tudo aí dentro é vaidade! Para se chegar de verdade a Deus, basta lermos a Bíblia”... Essa é a maior prova de que a nossa mente é manipulada em várias direções, sem que percebamos, em sã consciência, o quanto somos usados pelas pequenas engrenagens de uma grande máquina.

Do protestantismo, então, recebemos o Livro com prioridade absoluta. É muito mais fácil: não tem prazo de validade e vem canonizado... Contém uma teologia mais limpinha de variações, pois o que está escrito não muda. Dispensa beatificações, assim como canonizações de ossos. Mas, em contraposto, trata-se de uma organização que não tem dono e isso traz uma divisão dos infernos. O Vaticano tem dono há muito tempo e seus oponentes são representados por muitas ovelhas e milhões de pastores rivais autônomos. Ainda dizem que é apenas um rebanho para um só pastor... Os pastores são muitos, porque o mercado se amplia e eles não se entendem. Para um, o batismo é assim, para o outro, assado. Para um grupo isso é pecado, para o outro, não. O João daqui vai para o céu, o João de lá, não. Mas eles têm o Livro!

De novo a Feuerbach, na sua visão de que a religião é algo indissolúvel da natureza humana – de consciência abrangente –, ele confere ao judeu-cristianismo uma qualidade antropológica. Nessa exata dimensão, o deus recebe a herança antropológica que lhe dá forma. Ora, nessa linha de pensamento, fica impossível o ateísmo pós-moderno, porque o homem sempre vai ter saudade do deus parecido com ele... A partir do momento, então, que o homem desmensurar o grau de pensamentos e ações em comum com a divindade, liberta-se do deus-pai-humanizado. A possibilidade do ateísmo pós-moderno já se discute. Mas questiono novamente: até que ponto essa ideia pode sobreviver sem o Cristo? Se a razão de toda a moral cristã é o seu criador, como representar o primeiro ato sem ele? Questão de direito autoral? De mais a mais, as outras religiões não se baseiam na moral cristã. Têm seu próprio sistema moral, como o islamismo.

Sem Cristo não há moral cristã. Sem o Livro não há Cristo. Ninguém até agora me convenceu de que nossa natureza não é receptiva e preparada biologicamente para funcionar pelo medo do inferno. Vamos e venhamos que essa é a pedra no sapato do cristão, embora fira o princípio de alguns vaidosos que afirmam obedecer a Cristo somente por amor e nunca por medo de perder a salvação, ou ir para o inferno...

O homem que entrou na catedral para buscar o Eterno se deparou com o maior medo até então conhecido por ele: o medo da condenação eterna. Em pouco tempo ele descobriu que as coisas ocultas e erradas, tanto por pensamento ou ação, que deixava de praticar, eram exclusivamente por temor do castigo divino. Das punições aqui no mundo até a fogueira do inferno... Embora seu desejo maior fosse obter a vitória sobre o erro, totalmente por amor ao Eterno, só conseguia êxito quando se lembrava de que poderia ser castigado por Deus se cometesse um erro voluntário. Quando ele entrou na catedral, passou a conviver com a paranoia que acompanha o pacote da religião. Ficou infeliz, mas anunciou ao mundo que, finalmente, conhecera o amor, se libertara e que todos os obstáculos foram vencidos. Agora, através da experiência recente, ele sabe o que significa uma palavra na boca e outra no coração, pois ingressou na religião do Livro.

Na sua obra O futuro de uma ilusão, Freud situa as doutrinas religiosas como ilusões e, portanto, insuscetíveis de prova. Ele afirma que ninguém é obrigado a crer em dogmas, pois compara a crença em doutrinas religiosas a um delírio. Pouco nos sobra de argumentos diante de certas asseverações de Freud: “Se o único motivo pelo qual não devemos tirar a vida do nosso próximo é porque Deus amaldiçoou tal coisa e prometeu nos castigar, então, ao descobrirmos que Deus não existe, certamente exterminaremos o nosso próximo sem pensar duas vezes”. Ele prossegue: “Assim, ou esses indivíduos perigosos terão que ser punidos com rigor e mantidos afastados do saber intelectual, ou então a relação entre religião e civilização terá que passar por uma revisão completa”.

Ao considerar a religião como uma ilusão, reafirmando que o trabalho científico é o único caminho que pode nos levar ao conhecimento da realidade externa a nós mesmos, ao longo de toda sua obra, Freud a finaliza assim: “Nossa ciência não é ilusão – ilusão mesmo seria imaginar que aquilo que a ciência não pode nos dar, poderíamos obter em outro lugar”.

Esse tipo de clericalismo ateu, o ateísmo pós-cristão, que seria a aproximação dos valores da religião para usá-los sem a atitude transcendente, é discutível, pelo menos no que tange às ações íntimas e aos nossos pensamentos ocultos. É impossível a um ateu pós-moderno manter a conduta, nos parâmetros da moral cristã, diante de situações que exigiriam a autenticidade de alguém que crê totalmente na existência de Deus. Pelo fato de que o crente tem, inequivocamente, um vínculo de fé íntimo e profundo com um ser superior. Esse vínculo implica num tipo de temor à divindade que o ateu não conserva. Funciona na esfera neural – no nível da inferência paradigmal injuntiva. É o que já cansei de mencionar: a ocorrência da confirmação emocional da crença. Esse é o estágio em que a fé se traduz no seu ponto mais alto. Ora, o cético não tem o mesmo fio condutor de sentimentos, sensações e ideias. A já falada adoção da moral religiosa, então, fica na superfície cognitiva.

Por que, desta feita, o ateu pós-moderno tem que percorrer toda uma via-crucis na posse de um processo cognitivo antinatural? Esse modus não pertence a ele, é do devoto: vem acompanhado da razão da fé, que é atributo de quem a exerce. A moral não tem que ser religiosa e, sim, a moral-moral. Segundo Michel Onfray, “a moral não é, portanto, um problema teológico entre os homens e Deus, mas uma história imanente que concerne aos homens entre si, sem nenhuma outra testemunha”. Por que, então, forçar uma herança bíblica no campo da moral secular? Mais uma razão para que o cético não faça empréstimos, pois o dever moral que o homem já tem no subconsciente não vem da religião.

O que fazer daqui em diante com a interpretação da moral fora do mundo transcendente? A visão que conservo do futuro como resposta a isto se divide em três estágios: a conscientização do ser humano para a necessidade de eliminar de maneira gradual a ilusão religiosa da sua mente; a busca de uma nova ordem social, como requisito último para a sobrevivência da espécie humana, baseada nessa conscientização; já que deve ser absolutamente consensual entre os homens a ação proposta, essa ideia teria necessariamente que estar fundada sobre um princípio incontestável: o controle da natalidade. Só é possível haver reformulação moral através do controle da natalidade. Da mesma forma que somente é possível o amor, a colaboração, a compreensão e a recuperação da confiança entre os homens com menos homens sobre a Terra. Utopia?

    Repare-se que não aponto reformulação social, quando já vivemos uma época de cinzas sociais. Apenas argumento sobre uma saída para a preservação da espécie humana, a começar pela elaboração de uma base moral sustentada por um princípio – o controle de natalidade. Isto não é ideologia de direita nem de esquerda, é fator de sobrevivência. Não falamos com frequência no ecossistema, em salvar o planeta do superaquecimento e das mudanças climáticas, através da doutrina do politicamente correto? Por que não se fala primeiro em salvar o homem através do controle da natalidade? Fora disso, o que já temos hoje é um modus de devastação da vida humana – a morte em larga escala para dar lugar à natalidade em alta escala. Os sistemas de saúde, a violência urbana, os desastres naturais e os conflitos bélicos não exterminam suficientemente os humanos, como sabem os governos do mundo.

O encaminhamento do fim da fé que conhecemos é inevitável pelo simples fato da religião não se constituir como um fenômeno natural. A religião não é um fator genético, portanto deixa de ser natural. Ela é transmitida através da linguagem e da simbologia própria, fazendo parte de um processo de transmissão pedagógica. Se a religião fosse natural, seria uma questão biológica – ela não é transmitida por genes –, portanto, o simples fato dos filhos seguirem a religião dos pais não guarda relação com a genética. Assim, veja-se: um time de futebol não é uma herança genética, no entanto, o time do pai influencia o filho e, na maioria das vezes, ele segue a escolha do pai pela vida afora.

No dictum, "pior cego é o que não quer ver", é uma forma de entender como escamoteamos aquilo que percebemos ser verdade. Duvidamos de Deus o tempo todo, mas preferimos escapar de tal posição interior, pois sentimos medo de saber mais e, então, endossamos o Livro como palavra de Deus. O caminho mais fácil, assim, é fazermos parceria com a ignorância em relação à nossa própria ignorância – à preguiça intelectual que nos vitima...

O fim da fé na religião cristã, como em outras, é inevitável porque os absurdos doutrinários têm prazo de validade, ainda que pareça longo. Há de chegar o tempo em que o povo, por absoluto esgotamento, não terá mais condições de engolir as bobagens de antanho: transfusão de sangue proibida; batismo pelos mortos; até por aspersão, imersão, infusão, profusão, confusão; metafísica de padaria – pão francês que se transforma na carne de um espectro; beatificações com “milagres comprobatórios”; línguas estranhas faladas por mentirosos; ressurreições; profecias neuropatológicas; virgo intacta – a imaculada flutuando no ar rarefeito para chegar ao céu; cura divina de enxaqueca ou dor de dente; povo escolhido; fruto proibido no paraíso e milhões de outras estripulias mágicas, firulas fideístas desnecessárias de comentário. Liames doutrinários encaracolados na nossa vida!

Na sociedade fragmentada e exausta da ultramodernidade, creio que o espírito da religião apenas se poderá manter em estreitos segmentos debilitados – sem o estímulo dos séculos anteriores –, devido ao desgaste massificado do conceito de transcendência. Cada vez mais, será um atributo das classes de mais baixo realce intelectual. Penso que a religião vai continuar, porém nas cabeças mais modestas... Isto porque, em relação à religião do Livro, já acontece um fenômeno semelhante aos tempos de Jesus, quando sua promessa da vinda do Reino não se consubstanciou na época. Fato que provocou uma reinterpretação das Escrituras para que fosse adaptado o rumo doutrinário pretendido. No mundo atual, acontece algo semelhante: os que já sofreram mais na vida sabem que não há intervenção dos céus segundo a expectativa individual dos crentes, nem o desenlace apocalíptico tão esperado pelos crédulos da forma como eles sonharam.

Define-se, então, uma dúvida arrasadora na mente dos devotos nos quatro cantos da Terra: “E se tudo aquilo em que acreditamos realmente não for verdade?”... Como resultado, a filiação religiosa passa a ser um incômodo e constrangimento para os que querem se manter crédulos nas instituições, ao tempo que, na cabeça desses mesmos crentes, isso representa o início da perseguição aos fiéis como previsto nas Escrituras.

O desgaste da ideia de Deus já é algo irreversível, pelo simples motivo de ter sido provocado pela própria religião, sobretudo a cristã. Seus representantes macularam o conceito de Deus quando construíram os dogmas cavernosos e fizeram o Livro. Na literatura religiosa, temos o campo mais fértil para a digressão, a fuga do real, passando pelos confetes até chegarmos ao objeto de todas as religiões: a pedagogia do dogma com sua toxidez inseparável.

O dogma vem da dogmática, que vem do sacerdote, que lava o cérebro do devoto e obtém dele a confiança para acreditar que a Bíblia foi escrita por Deus. Esse mesmo sacerdote diz que Darwin é filho do Diabo e que de nada vale ler sobre a evolução. O devoto aceita, então, a palavra do sacerdote, desiste do saber, amaldiçoa Darwin – não porque confie no sacerdote –, ou por ser coisa do Demo, mas porque ele já se acomodou na vida como preguiçoso mental, optando pela ignorância sectária. Foi, então, construído um padrão defensivo na mente do devoto, um desvio cognitivo conveniente, que o deixou mais aliviado através da cumplicidade do sacerdote. Por isso é mais fácil ser devoto de qualquer coisa.

    O filósofo Daniel Dennett expõe a mecânica de benefícios obtidos pelos poderosos sobre a massa da credulidade: “Todos na sociedade se beneficiam, porque a religião faz com que a vida na sociedade seja mais segura, harmoniosa, eficiente. Alguns se beneficiam mais que outros, mas ninguém pensaria em querer acabar com a coisa toda. A elite que controla o sistema se beneficia a custa dos outros. A religião é mais semelhante a um esquema de pirâmide do que a um sistema monetário; ela prospera oprimindo os mal informados e impotentes, enquanto seus beneficiários a transmitem de bom grado a seus herdeiros genéticos ou culturais. As sociedades como um todo só lucram. Não importa se os indivíduos se beneficiam. A perpetuação dos seus grupos sociais ou políticos se reforça a custa de grupos rivais”. Vemos, assim, a demanda da religião e o seu produto bem explícito nos resultados sociais. No fim, o giro do capital tem a expressão mais sólida.

Toda essa engrenagem embute um moto contínuo que sugere a perpetuação da religião, diante da sua variegada influência social e com a diversão que ela parece proporcionar. Será? Sugere, apenas. É o ponto que ainda sustento: a certeza de que esse mecanismo não será perpétuo, pela razão de estar fundamentado em um Livro projetado para ser visto como santo, porém submetido hoje ao método científico, que impôs nova interpretação historiográfica. O desvalor causado pelo questionamento recente dessa historicidade bíblica, sem dúvida chega ao senso comum, que reinterpreta suas variações e se torna a geratriz de novo fenômeno social.

Mesmo com tais fatos expostos, o impulso religioso do homem não acaba e também a necessidade de confirmação dos padrões emocionais, a menos que se aplique o adestramento neuronal já citado. Aprender a pensar! Ainda que não proceda desse jeito, mas testar o pensamento como se o mundo material, que está diante de nós, seja realmente a única coisa que temos nessa vida. Devemos admitir, sim, que não somos o que, instintivamente, sentíamo-nos tentados a pensar que éramos. A partir daí, então, busquemos o contentamento apenas com o que somos: um evento biológico comum que acontece diariamente com os iguais da nossa espécie por todo o mundo. Simples assim, nascimento e morte no reino animal. Sei que é o mais difícil de alcançar, a renúncia, não como propôs Schopenhauer na sua Metafísica do amor – a renúncia da vontade –, mas a conscientização do processo da seleção natural.

Previsões religiosas são, em geral, processos concludentes do senso comum a partir da observação simples, empírica, da vida. É como a verdade de cada um. Previsões dessa natureza são achismos de pessoas que jogam dados e não justificam diálogo. Mas a visão de futuro em filosofia, mesmo extensiva à religião, com dados científicos coligidos, é algo que merece ser analisado, embora também esteja ao alcance da falibilidade.

No início deste livro, mencionei Carl Gustav Jung a respeito do seu princípio que defende a impossibilidade de penetrarmos na essência dos fenômenos psíquicos e que deveríamos desistir de fazer de um fenômeno um problema intelectual. Com base em Freud, discordo de Jung. Se esse postulado fosse verdadeiro, a psicanálise teria estacionado. É a visão de mundo de um gênio, mas sem o fundo científico de Freud. Tanto é que, na maturidade, Jung declara com exaustão transparente: “Desisto de chegar a um julgamento definitivo, pois o fenômeno da vida e o fenômeno homem são demasiadamente grandes. À medida que envelhecia, menos me compreendia e reconhecia, e menos sabia sobre mim mesmo”. Ao prosseguir, “Não estou certo de nada. Não tenho mesmo, para dizer a verdade, nenhuma convicção definitiva – a respeito do que quer que seja”. Ainda, para terminar, Jung diz: “Como em toda questão metafísica, as duas alternativas são provavelmente verdadeiras: a vida tem e não tem sentido, ou então possui e não possui significado. Espero ansiosamente que o sentido prevaleça e ganhe a batalha”. Acontece que Jung sempre me pareceu um homem dividido. Suas crises de transcendência me impressionam justamente pelo gênio da psicanálise que foi. Em Freud, nunca vi desvios dessa natureza.

Jung hesita sobre a vida ter ou não significado. Não. A vida não tem significado. Nós é que temos o dever de infundi-lo na nossa existência. Através de um grande amor, do casamento, dos filhos, do trabalho, da carreira pretendida, ideais artísticos ou científicos, enfim, do que acharmos importante e que sirva para seguirmos em frente. Ao lermos Darwin, vamos perceber que não somos o que imaginávamos ser e que o significado da vida é a própria vida.

Embora esteja a discorrer sobre minha visão em relação ao futuro da religião, isto pertence ao meu mundo perceptivo. Para qualquer pessoa que investigue algo, é como bater uma falta do meio de campo, uma ação repleta de fatores imprevistos. Mas insisto em afirmar que o cristianismo tradicional sofrerá um abalo sísmico, porque, com a evolução do método histórico-crítico, a Bíblia despertou suspeitas sérias. Novas formas de cristianismo surgirão, alternativamente, com a supressão dos dogmas, voltadas para os menos favorecidos de intelecto, o que já acontece através dos “apóstolos” emergentes. Será a época da bricolagem doutrinária cristã. As instituições que desfraldam suas bandeiras doutrinárias mais tradicionalistas podem desmoronar por causa do descrédito das Escrituras. Judaísmo e islamismo farão parte dessa mudança por também serem religiões do Livro – têm a Torah e o Corão.

O antídoto de maior monta em relação à religião é, sem dúvida, o processo de secularização que atingiu as fés do mundo. O que foi imposto no Ocidente como sagrado há séculos, não tem mais o mesmo significado e isso concorre para a demolição do edifício cristão. Outrora, a Igreja de Roma era forte – inexpugnável e impunha dogmas. Hoje, papas são substituídos pela pressão de uma sociedade pluripartida, divergente e amoral.

O que mais me impressiona nessa sociedade patética, até realço o termo, é a pluralidade de pensamento dogmático que ela nos demonstra. Refiro-me, também, ao desdobramento do pensar religioso, repetitivo e confuso. Mercantilista e doloso. Esse fator debilitante, fenomênico-social, é que deveria nos preocupar em relação ao futuro. Por certo, é a fragmentação social, a pluralidade doutrinária galopante, que se projeta no fator religioso atolado na corrida do ouro, empreendida pelo clero.

A Igreja, aliás, se preocupa sobremaneira com a comunidade física, com o corpo, que soma para manter a aglutinação do grupo através das ofertas, dízimos, celebrações e trabalho voluntário. A igreja finge que se preocupa com o interior do fiel, com sua relação com Deus, mas isso é a última coisa com que ela se preocupa, pois não tem controle sobre a íntima relação do devoto com a divindade. Logo, é o corpo que interessa ao clero. Mas, como animistas obcecados, pagamos para ser enganados: somos fiéis nos dízimos e nas ofertas. Para as fantasias do além, nosso cérebro hospedeiro fica feliz quando o clero repete: “Jesus te ama”...

Meu entendimento sobre o futuro da religião traduz-se nos efeitos da pluralidade de conceitos individuais, egoísmo, fome do ouro e absoluta falta de amor de uma sociedade decadente, em imbricação, que segue uma linha de descenso, sem retorno. O cristianismo subdividido ao extremo; o judaísmo no seu invólucro de gesso milenar e o islamismo na sua beligerância enferma. Os três monoteísmos estão desqualificados, devido aos tijolos ruins que foram usados na construção dessas religiões de obsolescência completa. Os três monoteísmos com seus livros que deveriam ter sido arquivados na biblioteca de Alexandria...

Comunismos e capitalismos naufragaram enquanto idealismo puro. Aliás, para mim, o comunismo nunca existiu, porque jamais passou de utopia. Alguns setores acadêmicos tentam revitalizar o marxismo com novas roupas de domingo, mas não foi a casa deles que caiu, foi o muro! Há muito tempo... E um muro feito para aprisionar os que estavam por lá, enquanto que as cercas na América existem para controlar a entrada de imigrantes ilegais... Do comunismo queriam fugir, em busca do capitalismo. Quanto ao capitalismo, é o que temos. Com a selvageria e injustiça típicas, é o meio natural por excelência, correnteza em que todos querem nadar. Ora, há muito percebemos que o Estado é sujo demais para administrar o capital nosso de cada dia.

O pior no capitalismo é que ele não existe sem a religião, precisa dela para que a riqueza seja transferida para as mãos das elites através dos monstros do clero. Nessa ditadura do capital, o deus da religião atua no palco da carpintaria humana, através da ideia da multiplicação abençoada dos bens materiais das “elites globalistas fiéis” e da prosperidade como vontade divina. Esse deus recebe, então, a sua parte dos dez por cento e ofertas como comissão. Abençoa a construção dos seus templos, administrados pelo clero, com o apoio do séquito angelical, que dá uma mãozinha nas relações consoladoras com os fiéis do proletariado. Aliás, o pobre economiza água para o rico gastar...

Quem, então, representa o capitalismo e recebe das mãos do clero a parte contratada na transferência das riquezas acumuladas pelo povo? Os cleptocratas[3]. Um compartilhamento comercial, societário, sem a perda da ideologia. São eles que tecem o governo secreto do mundo, alimentado pela ignorância dos ingênuos, que precisam do imperativo ético de que exista alguma coisa e não somente o nada. Os crédulos querem esse imperativo e não adianta demovê-los. São teimosos, pagam pela ilusão e mantêm a aliança entre os cleptocratas e o clero.

Os crédulos não enxergam o pano de fundo político e cruel que são obrigados a suportar. Os fiéis se satisfazem com a expectativa ilusória de ter um lugar preparado no céu para eles... Se a cleptocracia impera no mundo, em todos os setores, devemos aos crédulos incorrigíveis.

Na construção da porne[4], que compõe o binômio “Estado e seita”, as Escrituras sagradas têm o peso total. Através da palavra, registramos em páginas o pensamento, as ações antropopáticas e as idiossincrasias do deus formatado pelo judeo-cristianismo. Nos politeísmos não era necessário o registro em livros, pois não havia dogmas nem doutrinas. Não estava delineado ainda o conceito de pecado dos monoteísmos. Cada um escolhia o seu deus para se relacionar da forma mais estranha e segredada possível. Mas, no monoteísmo, uma vez as normas coligidas e registradas no Livro ficaram santas – viraram teologia!

No exercício entre católicos e protestantes de comer as carnes uns dos outros com cuidado mútuo, sem chamar a atenção da sociedade pelo canibalismo doutrinário, a Bíblia sempre teve um foco diferente entre eles. Para os católicos, o que importa é o conjunto da teologia da Santa Sé e seu gerontocrata ser obedecido. A Bíblia vai de suporte. Já os protestantes, têm o Livro no lugar do papa: é o poder da sola scriptura[5]. O primaz dá lugar à interpretação do freguês. Sobre tal polêmica, o jornalista americano Henry Louis Mencken, que escreveu o Livro dos insultos, foi prático no que deixou: “Os únicos protestantes realmente respeitáveis são os fundamentalistas. Infelizmente, eles são também bastante idiotas”. Discordo de Mencken, pois se fossem bastante idiotas não teriam conseguido passar por cima da autoridade do pai da Igreja romana e permitido que os adeptos do protestantismo estabelecessem a maior das concorrências, ao elaborar as próprias doutrinas...

A Santa Sé é una, corpo blindado. Não permite interpretações secundárias. Os filhos de Lutero ficaram soltos e a característica principal desses devotos é como convivem com a concorrência... As doutrinas são as mais doidas e variadas. Na Santa Sé, quando sai a fumacinha da chaminé, é porque Deus já nomeou outro senhor de idade para administrar aquela beleza cheia de arte. Nos feudos protestantes, são pequenos senhores, sem nenhuma expressão intelectual na maioria das vezes, que interpretam o Livro ao bel prazer e administram felizes os rebanhos. Sem cajado, mas com belas gravatas, belos carros e suas mulheres não tão belas. Qualquer coisa, os senhores feudais pegam o livro, que eles chamam de espada e cortam a alegria do fiel, dizendo que no cristianismo é preciso aprender a ter paciência. Se Deus não atendeu dessa vez é porque o tempo dele é outro, ou talvez exista algum pecado oculto no reino das margaridas...

Ainda falando sobre a minha visão do futuro da religião, temo que, enquanto houver pelo menos dois seres humanos sobre a Terra, a superstição religiosa continuará a existir. Digo dois seres, pois sempre haverá o trabalho pedagógico de um indivíduo tentando convencer o outro...

Cheguei à conclusão de escrever este livro pela necessidade de provar minha honestidade nos assuntos que dizem respeito à religião, sobretudo aquela que ocupou a maior parte da minha vida. Cansei de reverenciar a pastorada, mais carnais do que os padres da própria Igreja romana. De tempos para cá, analisei melhor a ciência em relação à fé e percebi que com a fé desenvolvemos um tipo confiança, mas com a ciência, a certeza. Prefiro mil vezes ter certeza, antes de ter confiança naquilo que me dizem ser o certo.

Optei, assim, por investigar o Livro da religião judaico-cristã, que se tornou, aos poucos, ineficaz na minha vida e, como resultado, a maior decepção que já sofri até hoje. Pelo menos, enfrentei o desafio de questionar a Bíblia e me sinto muito melhor do que antes. A diferença é que hoje sou livre.

Christopher Hitchens[6], brindado por ser conhecido como um dos “quatro cavaleiros do Apocalipse”, um herói na luta pela verdade, declarou no seu livro God is not great: “Após o terrível tsunami da Ásia em 2005, e depois da inundação de Nova Orleans, em 2006, homens bastante sérios e instruídos como o arcebispo de Canterbury foram reduzidos ao nível de camponeses bestificados ao agonizarem publicamente sobre como interpretar a vontade de Deus na questão. Mas se a pessoa faz a suposição simples, baseada em um conhecimento absolutamente certo, de que vivemos em um planeta que ainda está resfriando, tem um núcleo fundido, falhas e rachaduras em sua crosta e um sistema climático turbulento, então simplesmente não há a necessidade de tal ansiedade. Tudo já está explicado. Eu não consigo entender por que os religiosos relutam tanto em admitir: isso os livraria das perguntas fúteis sobre porque Deus permite tanto sofrimento. Mas aparentemente esse incômodo é um pequeno preço a pagar para manter vivo o mito da intervenção divina”. Hitchens prossegue no discurso, agora ressaltando a condição humana: “Aqueles de nós que tinham buscado uma alternativa racional à religião tinham chegado a um limite que era comparavelmente dogmático. O que mais esperar de algo que tinha sido produzido pelos primos mais próximos dos chimpanzés? Infalibilidade? Assim, caro leitor, se você chegou a este ponto e descobriu sua própria fé abalada – como eu espero –, estou disposto a dizer que de certa forma sei pelo que você está passando. Há dias em que sinto falta das minhas antigas convicções como se elas fossem um membro amputado. Mas em geral me sinto melhor, e não menos radical, e você também irá se sentir melhor, garanto, quando se livrar da doutrinação e permitir que sua mente livre pense por conta própria”. Hitchens morreu há pouco tempo e, certamente, todos os devotos do cristianismo dirão em uníssono que ele foi para o inferno. Mas existe outro fora daquele em que vivemos?

Meu livro não foi escrito para questionar a existência de Deus, mas para discutir a construção da Bíblia. Ninguém conseguiu provar até hoje a existência ou a inexistência de Deus, nem eu vou perder tempo com isso. Para mim, se Deus existe, não é da forma que aprendemos. Os homens inventaram a Bíblia e dizem que é a palavra de Deus para poder justificá-lo. Não acredito mais nisso.

Quando, então, me falam muito de Deus, apenas respondo: qual Deus? Para que essa pergunta encontre resposta, é preciso que sejam apresentados dogmas, doutrinas e histórias fantásticas para formatar o Deus de quem se fala. Não há como se propor a existência de um ser superior desvinculado da dogmática. Só o dogma desenha o perfil de Deus. Fora disso, é conversa perdida.

É só fazer um teste. A título de experiência, tentemos construir um deus, com todos os seus predicados, que não tenha qualquer base doutrinária conhecida para que ele seja sustentado como tal. Quais seriam esses predicados e atributos próprios? Onipotência, onisciência, onipresença, onibenevolência, etc. Onde encontrar os argumentos de sustentação para esses atributos? Na Bíblia cristã, na Torah, no Corão. Estamos falando dos monoteísmos. Mas os livros não nos interessam agora, já tocamos neles. O Livro foi exposto, discutido. Voltemos à nossa tentativa de construção de Deus sem as Escrituras. O que resta para prosseguirmos? Vamos lá, tentem! Impossível, não? O Deus que conhecemos só pode ser intuído através do Livro, que está aí há milênios. E o livro não é muito confiável, longe de ser perfeito...

Não aceito o rótulo de agnóstico. Se eu tiver, porém, que ser enquadrado num rótulo, o de ateu protestante ou ateu católico é a minha preferência, já que essas foram as duas religiões mais predatórias que fizeram a minha existência de alvo. Então, acho que vou ficar com o humanismo secular.

Pelo fato de alguns pensadores defenderem a ideia de que os homens não abandonam, com a ajuda do raciocínio, o que eles não adquiriram pelos meios da razão, não representa uma verdade absoluta. Não adquiri pela razão a fé cega que me prejudicou no passado, foram os desvios cognitivos. Mas o fato de ter deixado para trás essa mesma fé, devo exclusivamente ao conhecimento humanístico que me fundamentou. O que ocorre, é que abandonei a ilusão religiosa por uma razão cultural. Porque acredito no intelecto e no poder do conhecimento científico.

Nunca fiquei em “cima do muro”, porém, aceito o princípio da admissibilidade da existência de um ser ou seres superiores, mas como não há nenhuma prova desse deus, não vou perder tempo discutindo abstrações. Por outro lado, quem somos nós para afirmarmos a existência ou a inexistência de um ser superior que possa ter interferido na orquestração do universo? Não estamos situados fora do espaço-tempo para sustentar algo assim e isso não tem nada a ver com a ciência no estágio em que se encontra. Não é uma visão agnóstica, é incompetência humana.

Se um ser superior existir de fato, com sentido claro e profundo, quero compreendê-lo, com certeza. Se ele quiser cuidar de mim será ótimo, ficarei muito grato, porque não fiz nenhuma solicitação para vir morar nessa colônia penal. Mas, em relação ao nosso planeta, a teoria da seleção natural de Darwin é mais do que bastante para sanar qualquer dúvida, pois anula cientificamente o casal do Éden e, como consequência, o Livro que inventaram para perpetuar o judeo-cristianismo através dos séculos. Fica admissível filosoficamente, então, o questionamento do deus da religião.

Quando se fala em Charles Darwin no meio religioso, as pessoas se calam. Por quê? Ah... Porque é um assunto pesado demais para aqueles que gostam de historinhas como a da Fada do dente e pretendem prosseguir com a vida de quimeras! Sam Harris[7] se refere ao assunto sem rodeios: “Os cristãos que duvidam da verdade da evolução costumam dizer coisas como ‘a evolução é apenas uma teoria, não um fato’. Tal afirmação revela uma séria falta de compreensão sobre a maneira como o termo ‘teoria’ é usado no discurso científico. Na ciência, os fatos devem ser explicados com referência a outros fatos. Esses modelos explicativos mais amplos são ‘teorias’. As teorias fazem previsões e podem, em princípio, ser testadas. A expressão ‘teoria da evolução’ não sugere, de maneira nenhuma, que a evolução não seja um fato. Pode-se falar na ‘teoria da origem microbiana das doenças’ ou na ‘teoria da gravidade’ sem lançar dúvidas sobre a doença ou a gravidade como fatos da natureza... Também vale notar que é possível obter um doutorado em qualquer ramo da ciência com a única finalidade de fazer um uso cínico da linguagem científica, no esforço de racionalizar as gritantes deficiências da Bíblia. Parece que um punhado de cristãos já fez isso; alguns até conseguiram diplomas de universidades de prestígio. Sem dúvida, outros seguirão seus passos. Embora essas pessoas sejam, tecnicamente, ‘cientistas’, não estão se portando como tal. Elas simplesmente não estão empenhadas em uma pesquisa honesta sobre a natureza do universo. E as suas afirmações acerca de Deus e das falhas do darwinismo não significam, em absoluto, que haja uma polêmica científica legítima acerca da evolução. Em 2005 foi realizada uma pesquisa em 34 países, que mediu a porcentagem de adultos que aceitam a evolução. Os Estados Unidos ficaram na posição número 33, logo acima da Turquia. Enquanto isso, os estudantes secundaristas nos Estados Unidos se classificam abaixo dos estudantes de todos os países europeus e asiáticos em testes de compreensão de matemática e ciências. Esses dados são inequívocos: estamos construindo uma civilização da ignorância... Eis aqui o que sabemos. Sabemos que o universo é muito mais antigo do que a Bíblia sugere. Sabemos que todos os organismos complexos que há na Terra, inclusive nós mesmos, evoluíram a partir de organismos mais antigos ao longo de bilhões de anos. As provas são absolutamente esmagadoras. Não existe nenhuma dúvida de que a diversidade da vida que vemos ao nosso redor é a expressão de um código genético escrito na molécula do DNA, que o DNA passa por mutações aleatórias, e que algumas mutações aumentam as chances de um organismo sobreviver e se reproduzir num dado ambiente. Esse processo de mutação e seleção natural permitiu que populações isoladas de indivíduos se reproduzissem e, ao longo de vastas extensões de tempo, formassem novas espécies. Não há dúvida alguma de que os seres humanos evoluíram dessa maneira a partir de ancestrais não humanos. Sabemos com certeza, a partir de evidências genéticas, que compartilhamos um ancestral comum com os símios e os macacos. E mais: esse ancestral, por sua vez, tinha um ancestral comum com os morcegos e os lêmures voadores. Existe uma árvore da vida extremamente ramificada, cuja forma e caráter básicos são hoje muito bem compreendidos. Assim, não há nenhuma razão para acreditar que cada espécie foi criada em sua forma atual. De que modo começou o processo da evolução continua sendo um mistério, mas isso não indica, de forma alguma, que provavelmente exista alguma divindade à espreita por trás de tudo isso. Qualquer leitura honesta do relato bíblico da criação sugere que Deus criou todos os animais e plantas tais como nós os vemos agora. Não há dúvida alguma de que a Bíblia está errada acerca disso”. A história verdadeiramente se divide em antes e depois de Darwin...

De uma coisa tenho certeza: o mal existe de uma forma mais evidente que o bem. Qualquer um vê. O mal é sempre barulhento, enquanto o bem é silencioso e mais fraco. Seja lá o que se chame de bem, é o esforço individual ou coletivo para se atingir um ideal, um pensamento que nos deixa dúvidas. Na contramão, qualquer nome que se dê ao mal, Satanás, Asmodeus, Astaroth, Diabo e família, ou mesmo Mal pura e simplesmente, é o que ocorre de jeito ininterrupto na vida dos homens. Ou, quem sabe, um ser que poderia desempenhar o papel de Deus, se intitulasse como tal diante dos homens, mas que tivesse também a função de praticar o mal? Por causa dessa trevosa ininterrupção, as religiões foram criadas, pois o Bem precisa do Mal para existir... Mas os do clero não resolveram o problema do mal, pelo contrário, ainda dizem a nós, coitados, que a culpa não é da religião – que foi o pecado original! Nossos pais das origens nos deram esse presente.

Como Christopher Hitchens mencionou as suas convicções passadas, às vezes também sinto saudade das minhas antigas convicções religiosas, mas entenda-se bem: saudade de algo leve, esperançoso, festivo, com segurança, que dava impressão de alguém conduzindo nossos passos a cada instante... Mas era só impressão. Quem não tem saudade da época das fantasias? Que pena, ao avançarmos no conhecimento, caímos no mundo real. Mas é a escolha certa para enfrentar a vida com consciência.

Hoje, percebo o tempo perdido, tento resgatá-lo, mas em vão. Minha experiência religiosa do passado, entretanto, deve ter um aspecto necessário qualquer, pois cada um busca preencher vazios de acordo com a época em que vive e as dúvidas que enfrenta. Vejo que os jovens, na maioria, não têm problemas com dúvidas religiosas que os confunda. Apenas não estão interessados nisso. Outros há que questionam em tempo integral, frequentam igrejas, cumprem rituais e são filiados a instituições religiosas diversas. É de cada um. Quanto a mim, houve muito empenho para encontrar as respostas esperadas. O mais difícil foi reunir a coragem e a honestidade necessárias para dar o primeiro passo na direção das minhas convicções. Mas valeu a pena.

Só passando pelo deserto é que conhecemos a sede e os espinhos. Admito, portanto, a importância de todas as etapas da estrada. Por essa razão, tenho condições para falar delas de dentro para fora. Acho que a igualdade de ações e propósitos entre os homens foi minha descoberta mais importante. Todos querem a mesma coisa. Somos a mesma coisa: queremos servir a Deus e ficar ricos. Somos uma coisa em evolução biológica e cultural, que retrocede ao estado natural várias vezes ao dia. A barbárie está em nossos bolsos para uso contínuo e não abrimos mão disso...

Como Hitchens, lamento não estar mais na ilha da fantasia. Mas escolho a visão de hoje, com toda a carga de realidade que ela traz. Muitos permanecem na ilha da fantasia, morrem nela, mas quando se descobre com convicção a realidade do mundo, não dá para desfrutar mais de uma felicidade convencional, pois é apenas um pensamento. Hoje, tenho a felicidade do ser-saber – ontologia dos desiludidos e desigrejados. Antes, era o caminho fácil. O de agora, percorre-se a cada dia, é aleatório, único e sem enfeite. É melhor.

O que se há de fazer? Simplesmente, andar pelo caminho, que pode representar o devir da própria felicidade. Nesse roteiro, a escolha tem que ser feita: sentar para esperar o fim, resignados – amém – ou buscar significados aqui, não no além. Construir ideais, objetivos, razões. Não tolas, como o consumismo de per si, mas o consumo dos instantes, fazendo-os preciosos. Daí, significantes. Achar padrões para o mundo em que vivemos, conferindo-lhes significados elevados, porém para a vida na Terra, não nas estrelas. O amor não faz mal a ninguém e não precisa ser transcendente, deve ser o elo principal entre todos os seres daqui. Falar em amor celestial, enquanto as “verdades” não nos convencem? Só pelo fato de estar escrito na Bíblia que as coisas iriam piorar no fim dos tempos? Ora, voltamos às hipóteses? Confiar na Bíblia depois do método histórico-crítico, eis a questão. Fé e razão serão sempre inconciliáveis, apesar de alguns verem o contrário. Acho que o amor com dimensão profunda, por aqui, pode ter um resultado melhor do que fantasmas irresponsáveis pulando amarelinha pelos planetas, universo afora, ao invés de cuidar de nós...

Antes de perder a fé no deus político, que promete, não cumpre e nunca nos responde, perguntei a uma pessoa amiga que renunciara ao deus da religião, a quem ela recorria nos momentos de apuro. Com quem ela contava nos momentos de desespero, ao que me respondeu: “Eu analisei a vida e só conto comigo! Vou contar com quem, meu amigo?”...

Por falar em analisar, foi o que aprendi a fazer muito bem. No caso dos religiosos, parei por anos na análise de minúcias. Os mais fervorosos são os que se preocupam em exibir a “perfeição” alcançada. São indivíduos imprevisíveis, embora agindo dentro de uma previsibilidade aparente aos olhos da sociedade, abrigam os sentimentos mais multifacetados e contraditórios possíveis. Não são dignos de confiança, por estarem próximos demais do Criador.

O sectário de carteirinha é perigoso, covarde e calculista. Ele precisa mostrar que, sem o dogma, todos seremos mais e mais reféns da perdição. Cobram santidade dos fiéis e, psicanalisados, não ocultam, às vezes, desvios sexuais dignos dos livros negros da medicina do século dezoito, sendo a pedofilia a forma mais suave.

A Igreja alimenta a crise porque a crise sempre atrai as pessoas para a fé e, nesse processo, a religião nunca se desgasta pelo seu fracasso oculto, pois a culpa é sempre nossa. A lógica da exclusão funciona desse jeito... A Igreja delega aos fiéis cargos e atributos para encorpar a vaidade nas suas vítimas, que se sentem impelidas a um esforço sobre-humano no desempenho de uma nova personalidade. Foram renascidos e transformados por Deus? Não. Foram deformados pela máquina de moer carne da Igreja, que lhes promoveu a quasímodos espirituais... Por essa razão, Nietzsche definiu a fé cristã como um grande mal-entendido.

Antes de um julgamento por parte dos leitores e uma possível condenação aos horrores da eternidade por expor meus graves pontos de vista, peço que pensem sobre o que significa a palavra honestidade. Fácil é julgar, aliás, nunca se julgou tanto o ser humano, pois os pensamentos divergem entre os homens como em nenhuma outra época da civilização. Talvez devido à difusão diversificada do conhecimento humanístico. Em relação à palavra honestidade, é o requisito básico para a evolução do pensamento e, então, optei por questionar a religião em nome dessa honestidade. O que você faria no meu lugar? Quando se chega ao entendimento sobre a natureza da religião e a natureza humana, como prosseguir na arte cênica? Como representar mais um ato? Temos que atender à nossa consciência, mesmo sob a pena de sofrer acusações e julgamento dos detratores!

De que adianta ser um religioso hipócrita? Tenho certeza de que, se houvesse um julgamento divino, a honestidade como divisa do réu definiria a sua absolvição. Por isso, a proposta de Pascal já não me convence. Procurei, por todas as formas, conciliar minha visão de hoje com o deus da religião, mas foi um fracasso, pois as naturezas são opostas. Incoadunável. Preocupei-me em ficar sem religião, sem os irmãos e a proteção que o meio parece dar. Mas o problema é que escolhi ser honesto comigo mesmo – com todos –, em relação à minha posição espiritual.

Com minúcias, analisei as reações da sociedade sobre o homem que pensa cientificamente. Percebi a atitude de medo da massa ignorante com aqueles que têm certeza intelectual. A massa ignara sente-se ameaçada, arrepia-se e discrimina cegamente qualquer um que questione a religião. Profere julgamentos insidiosos, suspeitas padronizadas, acusação de assassinato de Deus e não é preciso mais. Mas isso, ainda bem, tem origem no populacho fanático. É próprio de uma classe intelectual que não mede as palavras nem o julgamento precipitado. Não pensa e precisa se pronunciar a todo custo, ainda que de maneira torpe.

Os desse populacho não raciocinam e sentenciam aqueles que não pertencem ao senso comum, “o homem sem Deus é como um verme que rasteja”, vociferam... Não têm noção do que dizem, mas precisam fazê-lo. Emitem qualquer juízo, desde que haja respaldo e repercussão entre os “fofoqueiros santos” dos meios religiosos, não importa quais sejam. Precisam acusar o que não entendem. Blasonar qualquer coisa, pois não têm opinião própria, mas a do grupo social de pertencimento. Se o mundo dependesse deles, ainda estaria nas palafitas das origens humanas. Acusam tudo que não conhecem em busca de apoio, por serem fracos, exatamente porque gostariam de ter coragem de abraçar o pensamento livre e o lado feliz da história.

Quanto vale ser honesto? Vale o preço da liberdade. Por todas as razões aqui expostas, tive coragem de duvidar, expor-me às críticas e lutar pelo meu ponto de vista. Para os antigos, até os do século vinte e um, isso significa perder a salvação. Como posso crer no deus das ameaças, que Michelangelo pintou na Sistina, no deus confuso do tio Gepeto? Para algumas pessoas talvez seja bom insistir numa fé cega em coisas do além... Até pode ser que se sintam felizes, mas eu deixei a embromação de lado.

Mostrei a invenção da Bíblia nesta obra e, indubitavelmente, são comentários nada convencionais, que abordam uma triste ilusão histórica. Quero, então, ser direto. Não vou encerrar estas páginas com divagações demagógicas, como fazem alguns escritores céticos, dando conselho para aproveitarmos os dias nesse mundo. Não vou encerrar este livro pregando simulações de ajuda ao próximo e defender os valores morais como forma de não sofrer acusações do tipo: “se um indivíduo é cético significa que é mau ou não tem caráter”... Não preciso escrever assim, pois sempre tive certeza de que a religião não faz o homem. Ela é que precisa se associar desesperadamente aos homens de valor e usá-los, sem que percebam, para prosseguir com a alienação das massas...

A verdade deve ser o centro da nossa busca e a fórmula para encontrá-la é examinar tudo que esteja por trás das coisas que se apresentam como verdadeiras. Quando a política, a intenção de lucro financeiro e o interesse em qualquer tipo de poder invadir aquilo que respeitamos, é melhor que se desconfie seriamente. Que se desconfie também dos gestos de amor, promessas e palavras com aparência de conteúdo. Cuidado com os que falam que as coisas são sagradas e suspeite, acima de tudo, daquele tipo vaidoso que se intitula “homem de Deus”, pois esse pode ser um réptil que desliza no jardim do nosso Éden. Ninguém é homem de Deus.

Bem, por aqui termino, mas com um conselho oportuno para melhorar a prática da leitura no dia a dia. Sabem como descobri todas essas coisas sobre a Bíblia? Minha visão não estava muito boa, então consultei um oftalmologista, que me receitou um par de óculos. Era miopia e, por isso, não conseguia ler a Bíblia com clareza... Brincadeiras à parte, não me sentia mais do que um míope intelectual no passado, pois não aprendera a pensar. Agora entendo como as coisas funcionam e como foi inventada a religião do Livro, que não me engana mais.




[1] Homem jogador.
[2] A velha escola de desenho e pintura.
[3] Governantes da cleptocracia (sistema de governo dos ladrões).
[4] Expressão grega que significa pornográfica/pornografia.
[5] Expressão latina que significa “Somente as Escrituras”.
[6] Jornalista e escritor inglês (1949-2011), que compôs com Richard Dawkins, Daniel Dennett, e Sam Harris, “os quatro cavaleiros do Apocalipse”, criadores do ceticismo pós-moderno.
[7] Filósofo e doutor em neurociência pela universidade de Stanford.


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